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Saúde mental: o que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito

Trinta anos depois do início da luta antimanicomial no Brasil, avanços foram conquistados, mas desafios persistem. Saúde mental do país vive dilema.

Publicado em: 16/12/2017 10:57 | Atualizado em: 26/12/2017 21:19

Ricardo Fernandes/DP (Ricardo Fernandes/DP)
Ricardo Fernandes/DP (Ricardo Fernandes/DP)
Certa vez, a psiquiatra Nise da Silveira, conhecida mundialmente por humanizar o tratamento de pessoas em sofrimento psíquico, disse: “O que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com a outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito”. Trinta anos se passaram desde o início da reforma psiquiátrica no Brasil e a fala da médica ainda precisa ser posta em prática nas instâncias de saúde, nas famílias envolvidas com o tema e por cada um de nós. De acordo com o Ministério da Saúde, 3% da população sofrem de transtornos mentais graves; 6%, de problemas mentais decorrentes do uso de álcool e outras drogas e 12% vão necessitar de atendimento em saúde mental em algum momento da sua vida.

O II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, em Bauru, São Paulo, em 1987, é considerado o marco inicial da luta antimanicomial no país. O marco legal, no entanto, somente acontece em 2001, com a lei 10.216, que institui a reforma psiquiátrica brasileira e os direitos das pessoas com transtorno mental. Nos dias 8 e 9 de dezembro, a militância nacional da reforma psiquiátrica voltou a se reunir no interior paulista para debater o tema. Os avanços existem, mas ainda há muito a ser feito.

O Diario de Pernambuco esteve em três espaços de representação dessa condição humana para fazer um breve retrato do tema através das histórias de Antônio, internado há onze meses no Hospital Ulisses Pernambucano; Sofia, paciente de um Centro de Apoio Psicossocial (Caps); e Petrus, morador de uma residência terapêutica. Enquanto o Caps surge como um elo de inclusão entre a pessoa em tratamento e a sociedade, a residência terapêutica é casa para quem não reencontrou abrigo na família após longas e desumanas internações em hospitais como o Ulisses Pernambucano, no Recife.

Paulo Amarante, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e estudioso do assunto, considera a retirada de milhares de pessoas dos manicômios e o fechamento de 80% de leitos psiquiátricos no país como a principal transformação nessas três décadas. “As pessoas eram consideradas perigosas, irracionais, incapazes, irresponsáveis. Na prática, mostramos que era a violência que nós exercíamos contra elas, isolando-as, tirando delas a possibilidade de convívio social, de participação, que as tornava bestializadas, animalizadas.” Para o pesquisador, no entanto, ainda é essencial romper com a medicalização e a prática patologizante. “Não basta criar novos serviços sem romper com o paradigma que orienta eles”, ensina.

Segundo a Secretaria Estadual de Saúde (SES), nos últimos anos, oito hospitais psiquiátricos foram fechados em Pernambuco. Cinco continuam em operação em convênio com o SUS. O estado calcula 178 pacientes internados de longa permanência nessas unidades que ainda precisam voltar para suas famílias ou serem encaminhados para residências terapêuticas. O déficit de Caps em Pernambuco chega a 242 unidades.
Uma outra dificuldade é desinstitucionalizar o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, em Itamaracá (HCTP-PE). “Já iniciamos um diálogo para que a pessoa possa ser avaliada na rede, evitando a internação.

Assim, estamos restringindo um pouco a porta de entrada”, disse João Marcelo Costa, coordenador de Saúde Mental da SES. O HCTP tem hoje 404 internos, dos quais 56% estão em situação provisória e o restante em medida de segurança. Neste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) questionou o Brasil sobre a manutenção dessas pessoas com problemas psiquiátricos em manicômios judiciais. Em fevereiro, a Seres iniciou um diálogo com famílias e municípios para acolher egressos. O desafio é convencer esses parentes a recebê-los, já que a maioria dos crimes foi praticada no ambiente familiar. Existem pessoas com transtornos mentais espalhadas também nas outras unidades carcerárias.

Ricardo Fernandes/DP (Ricardo Fernandes/DP)
Ricardo Fernandes/DP (Ricardo Fernandes/DP)

Antônio precisa de um lar

Antônio de Pádua Bernardo de Lima completou 63 anos, mas não tem família, renda, nem lar. Está há onze meses internado no Hospital Ulisses Pernambucano (HUP), na Tamarineira, no Recife, quando a média de permanência no local é de no máximo três meses. A situação do paciente vai de encontro a uma das principais determinações da reforma psiquiátrica: o fim da permanência de longa temporada nessas unidades.

De alta médica desde março, Antônio ainda não foi encaminhado para uma residência terapêutica no Recife, como indica a equipe do HUP, porque a prefeitura alega não ter condições de dar suporte ao paciente. Diante do entrave, a equipe do HUP vai acionar o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) para encaminhá-lo para um abrigo de idosos.

O HUP já funcionou como hospital asilar ao abrigar centenas de pessoas esquecidas durante longos anos por seus parentes. Hoje, funciona apenas com atendimento de emergência psiquiátrica. Por ser a emergência do estado em regime 24 horas mais conhecida, está sempre lotada. Com a mudança de perfil, a média de tempo de atendimento caiu para quinze dias e os casos mais graves chegam a permanecer por três meses, garante a direção. A situação de Antônio é exceção. Além dele, o HUP tem outro paciente fora do padrão, com dois anos de internamento. Nesse caso, a família não aceita o parente de volta e aciona a justiça para mantê-lo internado.

No contexto da nova política, o encaminhamento dos antigos pacientes para as residências terapêuticas ou para suas famílias foi o principal avanço, destaca a diretora na unidade, Rute Theil. Uma outra iniciativa considerada importante é a aquisição de trinta poltronas para os familiares acompanharem seus pacientes internados na enfermaria. A ideia é estender a ação para os 115 leitos. “A maioria tem co-morbidade com álcool e outras drogas e é paciente agudo. Se o familiar não puder ficar o dia todo, vem para reunião, acompanha consultas. É uma forma de empoderamento da família, de ajudá-la a cuidar”, explica a diretora.

Quem mais procura o HUP são os moradores da Região Metropolitana do Recife. “Em Jaboatão e Olinda, por exemplo, não há Caps suficiente. As equipes dos territórios estão sobrecarregadas. Toda vez que chega gente aqui é principalmente porque deixou de tomar remédio. Atualmente está faltando medicação no Recife, que tem uma instabilidade grande no fornecimento. As pessoas também vêm aqui em busca de receita e medicação”, diz Ana Coutinho, diretora médica do HUP.

Os chamados leitos integrais, são 251 deles dentro de hospitais gerenciados pelo estado, também podem ser procurados pelos familiares como alternativa de emergência 24 horas. A ideia com a instalação desses leitos é promover a inclusão dos pacientes psiquiátricos junto a outras pessoas atendidas nessas unidades.

A Prefeitura do Recife informou que, ao assumir a gestão, há quatro anos, encontrou 80% de medicamentos faltando. Esse número caiu para cerca de 36% no período. Quanto ao paciente Antônio, informou que ele ainda não recebeu alta, apesar do HUP afirmar que isso já aconteceu desde março.

Ricardo Fernandes/DP (Ricardo Fernandes/DP)
Ricardo Fernandes/DP (Ricardo Fernandes/DP)

A luta de Sofia contra a tristeza

Sofia, 22 anos, (nome fictício) foi diagnosticada com depressão e Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) quando criança. Chegou a tomar 14 remédios por dia. A medicação era indicada para conter os ímpetos de suicídio, a tristeza profunda, a insônia, a vontade recorrente de tomar banho e lavar as mãos. Pelo menos três vezes por semana, a estudante do ensino médio frequentou o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) José Carlos Souto, no Torreão, no Recife. Se tivesse nascido antes da reforma psiquiátrica, poderia ser mais uma paciente de um hospital do tipo asilar. O Caps surgiu como proposta de humanização do tratamento e de alternativa à internação.

Sofia mora com os avós, o pai e uma filha de dois anos em uma casa minúscula na Zona Norte do Recife. Há dois anos, deixou de usar os remédios por conta própria após engravidar. Ainda luta contra a tristeza e a falta de vontade de viver. Mesmo assim, prefere manter-se longe da medicação. “Lembro que ficava agoniada. Ia para o médico, para a terapia ocupacional, conversava. Mas não me sentia igual àquelas pessoas atendidas. Achava que elas tinham problemas mais graves que eu. Pensei que se eu continuasse daquele jeito, ia ficar igual a elas. Lá, percebi que não posso deixar a mente controlar a situação.”

O avô de Sofia, um aposentado com 64 anos, reconhece o papel do Caps como “elo de inclusão entre a pessoa com transtorno e a sociedade” e os efeitos positivos do tratamento junto à neta. “Já visitei o hospital da Tamarineira no passado e vi como as pessoas eram tratadas como animais”, lembra. No entanto, ele enxerga uma diversidade de problemas a serem solucionados na unidade. “Atualmente, por exemplo, três banheiros e a piscina, usada para atividades dos pacientes, estão sem funcionar”, critica ele, que também é conselheiro do Caps José Carlos Souto.

A promotora do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) Helena Capela reafirma a fala do aposentado. “Recife não tem número suficiente de Caps e de Caps 24 horas. Fizemos inspeção este ano e encontramos reclamações em sete deles. É preciso fortalecer os existentes em termos de recursos humanos e estrutura física. Há irregularidades sanitárias e estruturais nesse espaços. Faltam profissionais e a gente fica trabalhando na recomposição dessas equipes. A rede melhorou, sem dúvida, mas ela não funciona adequadamente.”

Psiquiatra, ex-ministro da Saúde e autor do projeto de lei que dispunha sobre a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos, o senador Humberto Costa enxerga um número insuficiente de psiquiatras formados para atuar nos Caps diante da demanda existente. “Há Caps que não têm psiquiatras. Trata-se de uma rede que precisa ser ampliada.”, ressalta. A Prefeitura do Recife não respondeu sobre as críticas do MPPE até o fechamento da reportagem.


Ricardo Fernandes/DP (Ricardo Fernandes/DP)
Ricardo Fernandes/DP (Ricardo Fernandes/DP)

O reencontro de Petrus com os próprios sonhos

Petrus Antônio Pinto. Nascido em 29 de agosto de 1983. Filho de Antônio da Silva Pinto e Maria Nair da Silva. Dados criados no imaginário de um homem subtraído da própria história e ratificados na folha de um registro tardio garantem um mínimo de passado ao presente de uma pessoa em reconstrução. Durante cinco anos, Petrus foi um dos internos no Hospital Psiquiátrico de Pernambuco (HPP). Antes disso, era mais um “louco” vagando pelas ruas. Sem documentos, sem família, sem afeto. Hoje, é o retrato das sequelas deixadas pela lógica da exclusão impressa durante décadas na pele das pessoas em sofrimento psíquico.

Ele caminhava desnudo e embriagado pelas sarjetas de Jaboatão dos Guararapes quando topou com uma viatura policial. Os homens de farda colocaram Petrus sobre a redoma do estereótipo e o levaram para o HPP, unidade fechada em 2011 e que mantinha 370 leitos. A cada seis meses, em média, Petrus fugia. Sem organizar o pensamento, revelava apenas um desejo de encontrar o pai e a mãe. Isso nunca aconteceu. Quando o hospital fechou, ele foi um dos transferidos para uma Residência Terapêutica Mista, na Zona Sul do Recife.

As residências terapêuticas são dispositivos criados dentro do processo de desinstitucionalização para acolher egressos dos hospitais psiquiátricos que perderam o vínculo familiar ou cujo laço ainda não voltou a ser estabelecido. Em cada uma delas, moram até oito pessoas, que são acompanhadas por cuidadores. Os grupos são formado de acordo com as afinidades formadas durante o convívio hospitalar. Cada morador sai do hospital com um Projeto Terapêutico Singular, pautado em suas potencialidade e desejos. A missão da residência é religar usuários e sociedade no desenvolvimento desse projeto.

“A residência terapêutica não é só um lugar de moradia, é de exercício da cidadania plena”, explica a coordenadora clínica das RTs do Recife, Adriana Santos. Em Pernambuco, há 95 residências terapêuticas, onde vivem 760 pessoas. Até 2014, eram 58 unidades, com 464 pessoas. Das existentes hoje, 55% estão no Recife. Nos últimos quatro anos, a capital duplicou a quantidade de RTs, em função do fechamento dos hospitais.

As unidades têm entre quatro e seis cuidadores, que se revezam em turnos, a depender do comprometimento dos habitantes. Além disso, são acompanhadas por um técnico de referência. “A institucionalização é tão severa em alguns casos que as pessoas precisam reaprender até a se vestir. No entanto, a nossa função não é tutelar, mas garantir o protagonismo”, acrescenta Adriana Santos.

A reconstrução da história de vida de Petrus faz parte dessa devolução de direitos. Em lapsos de memória, ele dizia que apanhava muito em casa e fugiu. Chamava a mãe de Nair e o pai de Antônio. Depois, criava outra versão. Às vezes, mencionava a cidade de Água Preta, na Mata Sul. Os detalhes foram pinçados para montar um quebra-cabeça. Em um trabalho investigativo e braçal, a equipe se apoia nesses dados para tentar identificar parentes. Já foram até Água Preta entrevistar a população. Colocaram até anúncio na rádio. Sem retornos.

Mesmo morando na RT, Petrus continuava a fugir. Foi assim até três anos atrás. “Era como se ele não se encontrasse, mas estivesse recuperando o senso de realidadade. Agora ele demonstra uma sensação de pertencimento”, conta a técnica de referência Emanuella Lima. Petrus religou a confiança de sair e voltar. Conquistou a habilidade em dialogar com a vizinhança, que rompeu o preconceito com aquele imóvel em um bairro de classe média. Divide os dias com os companheiros de casa e um cachorro, Júnior Petrus, que encontrou abandonado e resgatou. Está cheio de sonhos. “Quero uma casa, morar sozinho e ter a minha própria televisão.”

As pedras no caminho da saúde mental

A ausência de investimentos e dificuldade de abertura dos serviços substitutivos são colocados pelos especialistas como  principais entraves para efetivação plena da reforma. Crítico do modelo e da condução do processo no Brasil, o diretor tesoureiro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo, denuncia que, no passado, o país chegou a destinar 6,3% do dinheiro da saúde para a área mental. Hoje, o valor seria menos de 1,5%. Para ele, um dos resultados mais graves disso seria o aumento da população carcerária com transtorno mental.

“Não há uma política de prevenção de doença. Muitos doentes mentais viraram moradores de rua ou cometeram pequenos delitos e estão presos. Os manicômios agora são as prisões. Estima-se que 12% da população carcerária esteja nessa condição”, afirma. Informações oficiais do Departamento Penitenciário Nacional, entretanto, dizem que pessoas com transtornos mentais que estão presas por praticarem delitos correspondem a 0,05% da população carcerária do Brasil.

Em Pernambuco, uma das dificuldades elencadas pelo coordenador de saúde mental do estado é desinstitucionalizar também o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP-PE). “É uma realidade que precisamos enfrentar. Já iniciamos um diálogo para que a pessoa possa ser avaliada na rede, evitando a internação. Assim, estamos restringindo um pouco a porta de entrada”, detalhou João Marcelo Costa. O HCTP tem hoje 404 internos, dos quais 56% estão em situação provisória e o restante em medida de segurança. Neste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) questionou o Brasil sobre a manutenção de pessoas com problemas psiquiátricos em manicômios judiciais.

Desde fevereiro deste ano, explica a superintendente de Capacitação e Ressocialização da Seres, Valéria Fernandes, foi iniciado um diálogo com famílias e municípios para acolher possíveis egressos. “Uma equipe foi montada e cerca de 20 a 30 pessoas estão em processo de saída. O desafio é convencer esses parentes a recebê-los, já que a maioria dos crimes foi praticado no ambiente familiar”, relata.

Para além dos hospitais de custódia, existem pessoas com transtornos mentais espalhadas também nas outras unidades carcerárias. “É preciso efetivar uma política de redução de danos. Muitas vezes essas pessoas estão encarceradas pela falta de compreensão das pessoas sobre a dinâmica em relação às drogas”, diz João Marcelo Costa.

Um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostrou que a prevalência de transtornos mentais graves entre encarcerados é 5 a 10 vezes maior do que no total da população. Em Pernambuco, segundo Valéria, a “demanda dentro do sistema estadual não é significativa”. O maior percentual estaria no Complexo do Curado. “Temos sete psiquiatras que fazem atendimento itinerante. O problema é que falta profissional dessa área. Não temos cadastro de reserva.” Há nove meses, conta a superintendente, foi criado uma coordenação para fazer busca ativa e escuta desse público nos presídios. Neste mês, Pernambuco se transforma no primeiro estado a instalar no sistema penitenciário um sistema de regulação de entrega de medicamentos psicotrópicos.



Um novo capítulo, três décadas depois


Desde que foi implementada, a chamada reforma psiquiátrica sempre dividiu opiniões no país. Na último dia 14 de dezembro, um novo capítulo daquilo que é quase uma disputa foi escrito. A Comissão Intergestores Tripartite (CIT) aprovou as propostas de mudanças na política nacional. Dentre elas, a manutenção de leitos em hospitais psiquiátricos, o reajuste das diárias pagas a essas unidades, o limite de ofertas para serviços extra-hospitalares e o maior aporte de recursos para comunidades terapêuticas. A resolução entrará em vigor quando for publicada no Diário Oficial da União.

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) foi uma das instituições que se posicionou contrária às mudanças. Em nota, o conselho argumentou que a nova resolução afronta as diretrizes da políticas de desinstitucionalização psiquiátrica, previstas na lei de 2001. A Abrasco e a Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos dizem ainda que as regras afrontarão os direitos humanos, ao limitar os recursos para quem trabalha com a reinserção psicossocial de pessoas.

O senador Humberto Costa diz que a alteração, defendida pelo ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP), é um grande retrocesso “que jogará o país aos tempos em que o atendimento às pessoas com transtorno mentais era desumanizado e desrespeitoso”. Para ele, haverá uma desestímulo aos municípios na retirada de moradores de hospitais, um incentivo à medicalização e um redirecionamento progressivo para um modelo baseado em instituições médicas privadas. “A reforma foi reconhecida mundialmente como a mais avançada. Agora esse governo quer enterrar tudo com uma pá de cal”, defendeu.

Outras instituições, como o Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) consideram as mudanças como melhorias e a abertura de um novo panorama. A ABP classificou a proposta como resultado do esforço de entidades para reverter uma política “equivocada, que não valorizava a atenção em saúde mental feita em rede com atendimento por equipes multidisciplinares e não dava a devida importância ao SUS e a vida do doente mental”. A nova resolução, para a entidade, fortalece a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

ENTREVISTA
Paulo Amarante
Vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pesquisador titular do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ).

Em qual contexto se deu o início das discussões sobre a reforma no sistema de saúde mental do país?

Havia um contexto de virada do período autocrático, de ditadura, para o período de redemocratização. Por isso, o processo da reforma psiquiátrica não era apenas interno à saúde, mas envolvia o ideal de liberdade, de direitos humanos e democracia. E, nesse sentido, envolvia também a violência com que o estado tratava as pessoas com transtorno mental, com desasistência, abandono em instituições asilares. 97% de tudo o que se gastava era com os mais de 80 mil internos de hospital pisquiátrico. Quando o processo começou, foi denunciada essa situação.

A reforma trouxe avanços na instituição e garantia dos direitos das pessoas assistidas pela saúde mental?
Ao longo desses muitos anos de luta, foram fechados quase 80% dos leitos psiquiátricos e abertas novas formas de assistência, como os Caps, os centros de convivência, projetos culturais, de geração de renda. Foi uma transformação fundamental. Conseguimos tirar milhares de pessoas de dentro dos manicômios, pessoas que eram consideradas incapazes e perigosas, por um conceito arcaico de transtorno mental. A ideia, antes chamada de alienação, depois de doença e hoje, ainda assim inadequado, de transtorno mental. As pessoas eram consideradas periogosas, irracionais, incapazes, irresponsáveis. Na prática, mostramos que era a violência que nós exercíamos contra elas, isolando-as, tirando a possibilidade de convívio social, de participação, que as tornava bestializadas, animalizadas. Milhares de pessoas saíram dessas instituições e passaram a participar de reuniões, conselhos de saúde, projetos culturais… As pessoas passaram a fazer parte da cidade, dos processos coletivos. E também conseguimos que muitas pessoas não entrassem e não experimentassem a violência da segregação.

Quais foram as falhas que o processo apresentou ao longo desses 30 anos?
Em primeiro lugar, o estado investiu timidamente, tanto no SUS como na reforma psiquiátrica como um todo. Mesmo no período democrático, dos governos populares, o investimento na reforma, nas inovações, foi limitado. Muitas situações de corrupção, de desvio, muitos interesses político-partidários do que de fato construir uma nova possibilidade de cidadania. Nós tivemos talvez um décimo dos Caps que necessitávamos. Tivemos um décimo dos projetos culturais que necessitávamos. Não investimos em trabalho e geração de renda, em residências, no programa De Volta para Casa.

Os Caps funcionam da forma ideal?

Não. O Caps é um dispositivo, uma estratégia, um instrumento de mediação entre o sujeito com algum tipo de sofrimento e a sociedade. Mas eles acabaram medicalizantes, muito centrados no modelo médico tradicional. Muito voltados para si, atuando pouco no território, na sociedade, transformando a cultura. E nós precisamos de atuações que ajudem a trasnsformar as compreensões culturais.

Dentro dessa perspectiva, quais são os desafios que permanecem?

Os desafios, quando se fala em saúde mental no Brasil, são, de fato, a participação real das pessoas. A gente superar a ideia de que a pessoa por ter um diagnóstico pisquiátrico é incapaz, transtornada, insuficiente, que não consegue produzir. Nós ainda somos muito apegados ao saber psiquiátrico tradicional, não rompemos totalmente com ele. É necessário romper com a medicalização, a prática patologizante. Não é só criar novos serviços, novas práticas, se não rompermos com o paradigma que orienta eles. 

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